Por Que Somos Um Povo Desconfiado

 

A Inquisição gerou uma série de comportamentos humanos defensivos na população da época, especialmente por ter perdurado na Espanha e em Portugal durante quase 300 anos, ou no mínimo quinze gerações.

Embora a Inquisição tenha terminado há mais de um século, a pergunta que fiz a vários sociólogos, historiadores e psicólogos era se alguns desses comportamentos culturais não poderiam ter-se perpetuado entre nós.

Na maioria, as respostas foram negativas.

Embora alterassem sem dúvida o comportamento da época, nenhum comportamento permanece tanto tempo depois, sem reforço ou estímulo continuado.

Não sou psicólogo nem sociólogo para discordar, mas tenho a impressão de que existem alguns comportamentos estranhos na sociedade brasileira, e que fazem sentido se você os considerar resquícios da era da Inquisição.

Vou dar um exemplo. Como se explica a enorme dificuldade de nossos intelectuais firmarem uma posição pessoal sobre um assunto?

É notória a posição dos intelectuais do PSDB, de estarem sempre “em cima do muro”.

Quantos não conhecem a frase “Não sou a favor nem contra, muito pelo contrário”, uma expressão coloquial pouco usada em outros países.

Outro. Leia alguns textos de intelectuais e você notará que a maioria sempre cita dezenas de autores, a ideia é sempre do outro ou pelo menos atribuída ao outro.

O que passa por erudição pode ser uma tática de preservação da própria pele.

Numa Inquisição você não vai querer se expor defendendo suas próprias ideias, a saída é sempre atribuí-las a outrem.

Uma das coisas mais difíceis neste país é saber o que se passa na cabeça de um mineiro.

Ou seja, não permitir que alguém pudesse ler sua mente, ou chegar a uma aproximação de suas reais intenções, era uma condição básica de sobrevivência na Inquisição, algo que os mineiros cultivam até hoje.

Nossa Constituição e nossas leis tentam sempre agradar a todos, somos sempre conciliadores, nunca há perdedores, mesmo que isso gere absurdos.

A começar pela Constituição de 1988, que consegue ser de esquerda, de direita e liberal ao mesmo tempo.

Contrariar alguém na época da Inquisição era contrair um potencial inimigo ou incentivar uma denúncia anônima.

Nada me deprime mais do que uma pessoa humilde que me presta um serviço se despedir com a frase “Desculpe qualquer coisa”.

Por que alguém iria se desculpar por ter feito algo que ele nem mesmo sabe o que poderia ser?

Uma forma de se proteger de alguma denúncia posterior à Inquisição.

Fernando Henrique Cardoso, em seu livro O Presidente Segundo o Sociólogo, define a imprensa brasileira como extremamente atenta ao deslize.

Se um presidente anunciar o fim da pobreza no Brasil, segundo FHC, e no meio do discurso caírem seus óculos, a manchete e a foto de primeira página serão sobre a queda dos óculos, e não sobre o fim da pobreza.

O deslize era talvez o maior perigo de um português na época.

Era justamente disso que a Inquisição ficava à procura. Se um português mencionasse que havia tomado banho na sexta, isso poderia ser considerado indício de que se tratava de um cristão-novo.

Todo português precisava se policiar diariamente.

É essa preocupação com o deslize e a consistência interna do discurso coloquial que explica a maioria de nossas piadas de portugueses, em que rimos de sua lógica extremamente rígida e hermética.

Por exemplo, saindo de um hotel em Portugal às 5 da tarde, eu perguntei ao porteiro a que horas costumava escurecer naquela época do ano.

O porteiro olhou para mim em pânico, provavelmente querendo decifrar o significado da pergunta capciosa que eu havia feito.

Ficou minutos tentando achar uma resposta que não o comprometesse de nenhuma forma, uma resposta que não pudesse ser subjetiva, revelando o mais íntimo do seu ser, mas uma resposta calcada na lógica cristalina, pelo racional mais cartesiano possível.

Finalmente achou a resposta, sorriu e me disse: “Mas, meu senhor, aqui não escurece. Aqui em Portugal nós temos luz elétrica“.

Coloco a questão mais como uma hipótese a pesquisar, a de que nosso comportamento não foi determinado exclusivamente pelo índio, pelo negro nem pelo europeu, mas que uma boa parte foi moldada pelos quase 300 anos de Inquisição.

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Comentários

23 respostas

  1. Kanitz, discordo de que a Inquisição tenha acabado há mais de um século. A Inquisição praticada pela Igreja Católica, com poder para tal, sim. Mas a prática continuou e continua. A ditadura militar e a ditadura Vargas no Brasil são exemplos de Inquisição moderna, onde se tortura e mata por discurdância de posicionamento político, sobretudo. Há outros tantos exemplos internacionais, Guantanamo, Servia, Iraque, Libia, etc.
    Durante a leitura deste texto, ao me deparar com a frase, “Contrariar alguém na época da Inquisição era contrair um potencial inimigo ou incentivar uma denúncia anônima”, percebi que se a referência fosse a década de 70 no Brasil a frase estaria perfeita exceto a palavra Inquisição.
    O conceito é interessante, mas, ao meu ver, a Inquisição apenas mudou de nome.

  2. Especificamente a respeito deste porteiro, e das “piadas de português”: existe um outro detalhe atrás disto, que é a forma de pensar. O brasileiro tem a forma de pensar dedutiva e o português a forma linear.
    Pergunte a um brasileiro e a um português: “tem horas?”. O brasileiro responderá “xx horas”, já o português, se tiver relógio, responderá “Tenho”, que é a resposta linear.
    Ao levar isto em conta, Você perceberá que estas “piadas de português” não tem graça nenhuma.
    Se diz que um brasileiro que estava perto da divisa entre Portugal e Espanha perguntou a um português: “esta estrada vai para a Espanha?”. Obteve como resposta “Se for para a Espanha, vai nos fazer muita falta.”
    Analise o “vai para”, que, a rigor significa “será entregue para”, que é o que o português entende, e não o que o brasileiro deduz “a estrada nos leva para”.
    Um outro aspecto linguístico horrível que surge em todas as vésperas de feriado no Brasil – as listas do que abre e do que fecha no feriado.
    Saibam todos que nenhuma única agência bancária fecha em feriado, nenhuma, nenhuma, nenhuma!
    Todas elas P E R M A N E C E M fechadas no feriado, o que fecha em feriado é o que E S T A V A A B E R T O nesse dia.
    Acho que é partir dessas notícias dúbias é que o brasileiro passou a deduzir o que o outro fala.

  3. Olá Kanitz.
    Ó nois brigano di novo. Deus determinou que todos os brasileiros mais influenciados pelos temores da inquisição, serão no futuro políticos, e partidários ou integrantes do PSDB.
    Não viaja homem, podemos até ver algum resquício daquele tempo sombrio hoje, mas diluído no ocidente como um todo.
    O que VC contou relativo ao porteiro português, aconteceu pelo raciocínio binário que se nota de maneira geral nos portugueses. Lá eles dizem que a pergunta tem a mesma importância do que a resposta. A pergunta não foi boa. Deveria ser: A que horas anoitece?, ou ainda que horas o sol se põem?
    O porteiro estava certo.
    Para a sorte dos brasileiros apenas um partido tem políticos que ficam em cima do muro.

  4. Concordo com o que o Edgar Antonio Sbrogio disse quanto a podermos ver resquícios da época da Inquisição diluídos no ocidente como um todo.
    No entanto concordo com Kanitz que no Brasil isto possa ser mais visível (não tive convivência com estrangeiros suficiente para comprovar) pois no Brasil o fato de não podermos confiar nas instituições que nos garantiriam segurança contra as perseguições faz com que as pessoas tenham muito medo.
    Um medo suficiente para negarmos que isso acontece. Isso só é revelado nas nossas piadas e brincadeiras. São os “amigos do rei” que são promovidos, são os funcionários públicos misteriosamente removidos, são os promovidos sem razão aparente, são os que jogam golfe com o chefe e conseguem se manter em cargos para os quais não são aptos. São os que recebem as homenagens pelo que outros fizeram. Quantos se manifesttam claramente quando isso acontece?
    Temos uma infinidade de piadas sobre a capacidade de falar muito sem dizer nada que nos comprometa. Temos até sites que brincam com a criação de textos vazios sobre qualquer coisa.
    Infelizmente, usamos termos como ” fulano está sendo frito” e depois negamos que os resquícios da inquisição estejam presentes. A propósito: até a negação desta realidade, parece indicar o medo de perceber uma coisa que não deverá ser dita pois além de desagradar aos que tem o poder de fritar-nos, desagrada àqueles que podem ser fritos. Ninguém gosta de perceber tamanha fragilidade.

  5. Sim! Essa é a inquisição. Ao invés do fogo ateado a fogueira, o fogo de dossies muitas vezes com verdades inventadas. Daí o fato que muitos honestos preferem manter-se a parte da vida pública.

  6. Seguindo sua lógica, a Estrada também não nos leva a lugar algum. Tem que ir por ela para se chegar lá. Aliás, note a dificuldade de compreensão em uma mesma lingua e entenderemos a dificuldade de compreensão no mundo.

  7. Administrador não briga
    Mas na sua linha de políticos, vejam como no Brasil muito da politica gira em torno de dossies que uns tem contra os outros. Dossies que são entregues a imprensa na hora certa, Dossies que foram acumulados com os mesmos metodos da inquisição.

  8. Brilhante o raciocinio. Sou psicólogo e concordo plenamente com o Kanitz. Estes valores que trabalham essencialmente com o emocional das pessoas são introjetados no inconsciente e influenciam o modo de ser das pessoas por muitas gerações. As religiões fazem muito bem às pessoas mas muitas vezes extrapolam as suas funções.

  9. Caro Kanitz,
    Excelente o texto sobre a inquisição portuguesa.
    Concordo com suas reflexões e imagino que a continuidade de idéias e comportamentos por tanto tempo sem necessidade de reforço continuado se deve ao simples fato de que a inquisição foi um golpe mortal na função de pensar, a mais nobre e importante função da inteligência humana. Depois de fogueiras, torturas, ameaças, etc., agora bastam algumas imagens, crenças e preconceitos repetidos desde a infância, para continuar formando seres inválidos, mentalmente incapazes de pensar por si mesmos nos aspectos mais importantes de suas vidas, que é a orientação para seu crescimento mental, moral e espiritual. Uma análise cuidadosa mostra que a inquisição, assim como outras imposturas religiosas, foi muito certeira ao invalidar as zonas mentais que deveriam cuidar das questões da vida moral e espiritual do ser humano, deixando-as livres para desenvolver em outras áreas, como a ciência, a tecnologia, etc. Só assim podemos explicar o enorme desequilíbrio entre o avanço técnico-científico e o atraso da evolução espiritual da humanidade.
    Eduardo F Barbosa

  10. Deixou profundas marcas no inconciente pessoal e coletivo. Tanto que até hoje aqueles que pensam e portanto agem diferentemente da maioria, são vistos como o “olhar desconfiado”. Sim o pensar, o questionar não é bem visto hoje em dia. Conheci pessoas que memorizam 20 páginas de uma pauta no máximo em três lidas, mas no final quando perguntado sobre o que entenderam ou por uma opinião pessoal, agem como computadores respondendo novamente com o que foi memorizado (inclusive com erros de português, sem houverem erros no que foi lido).

  11. Perfeito Kanitz, é impossível que o clima de terror não gerasse uma forma de ser e agir, e por ser sub-reptícia, mas difícil de perceber e, portanto, de ser modificada. E não só isto, somos frutos da contra reforma, somos especialista em mudar para tudo continuar igual. Não temos senso crítico, nas escolas, ensinamos tudo sobre a estrutura de uma frase (repetindo o que provavelmente os licenciados aprendem na faculdade), mas a maioria sai sem saber interpretar um texto. Não sabemos receber críticas, ofendemo-nos profundamente a ponto de romper amizades. Recebemos passivamente notícias de corrupção que deixariam um setentrional irado até às vias de fato. Não denunciamos, se bem que ainda hoje se pode sofrer as conseqüências de uma denúncia e o que é pior sem poder correlacionar causa e efeito. Quem protesta, quem exige direito é um cara “nervoso” e estressado. Mas ai vem o ponto, se algo assim passou e passa desapercebido durante tanto tempo, como poderemos mudar este comportamento?

  12. Só polemizando, sem brigar, mas não há só “aquele” partido cujos políticos ficam em cima do muro. Outros menores e menos falados são também dessa natureza, vide a alternância dos que apóiam. E ainda há aqueles indivíduos que também o são, independente do partido em que estão ! E outra coisa importante, raciocínio “binário”, como colocado, é também fruto de uma educação/cultura (ainda Inquisidora ?) que de certa forma “poda” o raciocínio mais complexo e não linear, como falaram aqui. O porteiro respondeu “meio-certo”, pois ele deveria ter avaliado, de forma não linear, que a pergunta, se interpretada de forma binária, não tinha razão de ser ! Mas isso seria pedir demais…rs.

  13. Milagre um mineiro ou um integrante do PSDB não ter chiado ainda….
    No Brasil pagamos caro pela franqueza no falar. Pagamos bem caro. Por isso a maioria não é franca.

  14. Não sou sociólogo, não sou filosofo, não sou historiador não sou matemático, não sou físico, nem tão pouco pensador.Mas como opinião é como nariz todos tem, lá vai a minha também.Assim como espertamente usou-se a inquisição para atacar o PSDB, optou-se para costumeira minerice saber de tudo e falar pouco e não dizer quase nada.Sejamos coerentes F.H.C, não é dos piores e tem coragem e coerência e ao final da vida comprar uma briga sobre liberação das drogas, não é ficar em cima do muro.Mas a idéia não é ofender, então desculpe qualquer coisa. P.S “ falar não é o que diz, mas o que os outros entendem”, assim como para bom entendedor meia palavra basta.

  15. Darcy Ribeiro pensava como vc… ele não só considerava que havia de fato uma “memória” na sociedade, que contribuia fortemente para sua identidade e comportamento, como tentou defini-la região à região no Brasil, no livro “o povo brasileiro” livro fascinante, imperfeito, mas fascinante.

  16. Eu sou mineiro e gostaria de ouvir mais a respeito.
    Acho o mineiro, de modo geral, muito enrolado nas coisas, gosta de “dar nó”, ao invés de simplesmente ser sincero com você. Vejo isso mais profissionalmente pois trabalho em SP e em outros locais do país. O que não quer dizer que paulistas, fluminenses, gaúchos, ou outros brasileiros não tenham N qualidades e N defeitos.
    Isso não é uma crítica a nós mineiros; é apenas uma constatação, de um “mineiro da gema”, que se incomoda com tal característica.
    Se isso tem um histórico por trás, certamente! Se é um histórico vindo da Inquisição, reforçado pelos Inconfidentes, não sei dizer.
    Mas que é uma realidade, é!

  17. Com certeza há uma conexão. Ainda mais a influência do catolicismo herdado dos portugueses. Talvez a origem de sermos defensivos com relação a gafes e costumes.

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